Luis Borges
A Casa de Vidro (1950/51) da arquiteta Lina Bo Bardi é uma das obras de excelência da arquitetura moderna no Brasil: expressão de leveza e levitação de um fino objeto implantado em terreno acidentado, imerso nos remanescentes de mata “brasileira” do Jardim Morumbi – palavra de origem tupi-guarani que deriva de murundu-mbi, isto é, morro verde. Quase setenta anos depois, a obra Casa de Vento (2019) da artista Lucia Koch é uma intrigante revelação da força do tempo neste lugar.
Ao vestir as grandes janelas da Casa de Vidro, a artista transforma a paisagem em que a casa se define, seja como imagem imersa na mata, seja como significado na cultura da modernidade. Ao interferir na transparência total do cristal com um acortinado de cores que se movem por um gradiente entre o âmbar e o azul, a Casa de Vento abala a histórica relação entre a casa de vidro e a paisagem natural – o ideal sublimado e transcendente de continuidade entre espaços interior e exterior da arquitetura moderna. A Casa de Vento amolece ou dissolve as linhas estáticas da imagem arquitetônica e do próprio conceito de casa de vidro, em uma surpreendente dança entre o mundo sólido das linhas afirmativas daquela arquitetura e o mundo fugaz das superfícies dinâmicas e das tonalidades do dia.
O artifício da artista foi engendrado para introduzir o inesperado no espaço controlado da arquitetura. Para isso, captura o movimento do vento nas cortinas e envolve os visitantes em uma experiência extraordinária da fruição do espaço arquitetônico. A paisagem não mais se fixa na moldura idealizada da janela, não se cristaliza no enquadramento procurado pelo olho fotográfico, nem se camufla ou se confunde com o vento que move a exuberante vegetação. O movimento capturado nas cortinas se sobrepõe a tudo que é natural: no seu fluir contínuo desenha linhas ondulantes nas dobras do tecido em compasso com a dinamogenia do ambiente total em trânsito temporal. Um relógio interior nos informa que o tempo passa irreversivelmente, como as nuvens que atravessam o céu, como o vento que atravessa as folhas das árvores, como a luz que atravessa o dia e a noite na cidade.
A Casa de Vento sublinha o tempo na apreensão do espaço. Os extremos do gradiente de cores utilizado nos tecidos descrevem o arco leste-oeste da orientação das fachadas laterais da Casa de Vidro. O crepitar do fogo laranja e os estalos das árvores incendeiam os nasceres do dia. O brilho de luz líquida se derrama na superfície reflexiva do piso da área social da casa dos Bardi. O frio azul ora empalidece os longes nublados crepusculares, ora inunda de céu limpído a sala de jantar. Os inúmeros azuis dos entardeceres outonais ou dos poentes de inverno são, antes de tudo, o fluir do tempo nas cortinas de vento que filtram a luz natural. O sol alto, nem tanto a pino neste outono-inverno, escorre pelo pátio interior da casa para anunciar a sinfonia de cores conviventes numa único ambiente e no grande panorama configurado pela fachada principal. Projetam-se sombras das folhagens nas superfícies fluídas das cortinas, sem interromper as inusitadas paisagens da cidade, agora apreendidas em camadas. Tudo é artifício: na arte, na arquitetura, na paisagem e naquilo a que reconhecemos como a natureza na cidade.
A arquiteta Lina Bo Bardi testemunhou, durante quarenta anos morando nesta casa, a profunda transformação de São Paulo. Mas a paisagem muda diária e lentamente. A Casa de Vento torna perceptível esta lentidão. Cantos de pássaros passeiam coloridos pela casa arejada. Parecem combinar-se com a variação luminosa anteposta ao vidro. O vidro quer se transformar em vento, diluir-se no tempo, depois de ter, por setenta anos, se diluído no espaço.
Quando age o bom vento maneiro que esparrama os cheiros e não arrasta ou revira as coisas, a Casa de Vento é uma narrativa sobre o tempo lento daquele endereço: como um relógio solar, instrumento que nos conecta às especificidades cósmicas dos lugares e à mecânica celeste, ela expõe a experiência física do passar do tempo. Quando o vento se enfurece, a Casa de Vidro é a proteção primordial dos corpos e a Casa de Vento se agita como as velas das embarcações em alto mar. A Casa de Vento é tão permeável quanto o vidro, tão dramática quanto o tempo.
Como costumava dizer Ana Terra. personagem do romance o Continente, que inaugura a obra O tempo e o vento, de Erico Verissimo: “Sempre que acontece alguma coisa importante, está ventando”.
2019