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Promover o Turbilhão, Causar tumulto: Lúcia Koch

Tiago Mesquita

No dia 07 de abril de 2018, Lúcia Koch abriu a Longa Noite: um projeto de ocupação da antessala do teatro do Sesc Pompeia. Nela, fazia interferências na iluminação do lugar, atribuindo um forte sentido simbólico à cor da luz. Ela cobriu o grande telhado de vidro transparente de lá com filtros de gelatina violeta que emprestaram a aquela sala uma aparência crepuscular, renitente, permanente, sem promessa de alvorecer, até o encerramento da mostra. 

Naquele momento, o reacionarismo, agora no governo federal, vivia um momento de glória. Já anunciava aos quatro ventos ao que vinha e parecia se incomodar com os fiapos de garantia democrática construídos com dificuldade na Nova República. 

Para a abertura da exposição, a artista convidou os visitantes a vestirem vermelho. O convite tinha um sentido simbólico e cromático. O vermelho, em contraste com a cor da luz, garantia de lampejos teimosos diante do escurecer sugerido pela instalação. Também por isso, hastes de madeira vermelha, tais as que constituem as treliças do Sesc, eram distribuídas no lugar. Os bastonetes eram fissuras que não se apagavam com a aproximação das trevas. A artista sugeria ao público que manipulasse tais pedaços de madeira. Os visitantes, sozinhos ou em conjunto, podiam brincar com eles, jogá-los no chão, bolar formas e mesmo se contrapor a aquela penumbra.

Trabalhos mostrados agora na Galeria Nara Roesler, como Turbilhão, são o resultado dessa colaboração. A artista soube ver nos usos sugeridos pelo projeto de Lina Bo Bardi e recriados pelos usuários do Sesc, uma possibilidade de se continuar inventando relações de convivência com as pessoas, os bens culturais e o lazer desinteressado. Talvez por isso, recentemente, um período de baixas expectativas de futuro, o repertório da arquiteta serviu como ponto de partida para artistas tão diferentes como Lúcia Koch, Renata Lucas, Isaac Julien e Armando Andrade Tudela. 

Essas colaborações com os visitantes ou usuários dos prédios foram importantes na série de trabalhos apresentados quase que consecutivamente pela artista desde 2018. Em Vento (2019), ela instalou cortinas de poliéster na fachada de todos os apartamentos do Edifício Península, em Porto Alegre (RS). Do chão ao céu, como em pinturas místico de Caspar David Friedrich, a luz variava do preto tectônico a um radiante vermelho. O espírito de boa vizinhança parecia animar e tornar possível o projeto, tornando presente a luz ofuscante do início do ano em Porto Alegre. 

Mais recentemente, em Casa de Vento, ela ampliou o uso de cortinas de poliéster em dégradé em outra construção icônica de Lina Bo Bardi: A Casa de Vidro (1951). Por fora, o trabalho se relacionava com a atmosfera. O vento, em diferentes intensidades, a ondulava os tecidos sem parar. Mas essa impermanência, parecia ser vista pelo seu avesso no interior da casa. O que interessava ali era os efeitos luminosos do dégradé das cortinas, que iam do azul ao âmbar, sugeriam. Havia quartos com a luz esmaecida do amanhecer, outros cômodos tingidos pelo lusco fusco do fim do dia. A luz associava as partes da casa, para além das promessas do projeto arquitetônico, a um tempo rotineiro, doméstico, povoada de ricas contradições. 

Nos trabalhos aqui mostrados, essas intervenções ganharam uma dimensão escultórica mais evidente. Talvez, a ideia de escultura parta dos feitos de Gian Lorenzo Bernini (1598 – 1680) na Capela Coronaro, na Igreja de Santa Maria della Vittoria (1644-47) ou no teto de Sant’Andrea Al Quirinale (1658 – 1678). Obras realizadas em relação ao lugar em que são instaladas, que pretendem estabelecer algum tipo de ambiente luminoso.

As peças que dão nome à exposição, Tumulto Turbilhão, lidam com o espaço e com transitividades pouco perceptíveis, como a luz e a atmosfera no espaço real. Turbilhão, como foi dito acima, parte de elementos arquitetônicos do Sesc Pompeia (as treliças vermelhas) e é o resultado do trabalho colaborativo da exposição Longa Noite

A artista troca o vidro da fachada de uma sala da galeria pela treliça vermelha. Com isso, modifica a relação do espaço com a luz e a temperatura do exterior. Se antes a abertura para a rua era ótica, agora o ruído das ruas, os ventos, a umidade e a temperatura entram pelas frestas da janela. Esse caráter de impermanência, transitivo, de mudança lenta, mas permanente, parece contaminar um espaço mais estável. Tal transitividade também é sugerida pela escultura. No meio da treliça, a artista insere um círculo feito com o mesmo material, que gira constante e vagarosamente, sugerindo variações óticas. 

A artista procura tornar visível essas pequenas fissuras, mudanças perceptíveis, mas que deixamos passar batido, em um período em que a realidade parece se impor de maneira intransponível. Tumulto insere em uma forma complicada, barroca, tecidos em dégradé que vão do brilho amarelado a um violeta noturno, também sugerindo as transformações luminosas como passagens atmosféricas frequentes que deixamos escapar. Invade as salas, confunde o tempo e desorienta o espaço. Sopra cor aqui, ali, pra ver se a letargia é mesmo insuperável. 

Em todos os trabalhos, a luz tem sentido narrativo. Fala do fechamento de possibilidades que uma derrota sem epopeia, como falado por Lucia Koch, provocou. O trabalho insiste na fissura, na mudança, na transformação permanente, ainda que essa não nos assegure nada. Em contato com a passagem do tempo, as mudanças do dia, as passagens da luz, as pessoas, talvez venha alguns vislumbres, daí, quem sabe, o turbilhão. 

2019