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Cordisburgo

Felipe Chaimovich

A visão do mundo como sistema funda-se em acordos entre pessoas com padrões interdependentes. A percepção de cores, em particular, evidencia a necessidade de diferentes indivíduos compararem a experiência diante dum mesmo fenômeno. Quando padrões cromáticos normais são alterados, somos levados a buscar no olhar do outro a medida de nós mesmos.

A cor é um grau primitivo de nossa experiência de um conjunto organizado de partes. Por um lado, aprendemos a identificar objetos singulares por meio da cor. Mas, para que possamos utilizá-la como padrão de reconhecimento, aprendemos também a perceber cada cor em relação às demais. Um objeto vermelho numa sala toda iluminada da mesma cor não é definitivamente considerado como rubro, até ser contrastado com outra cor.

Lúcia Koch coloca-nos em experimentos vivos de reencontro da sociabilidade por meio da manipulação da experiência visual da cor. A artista articula a produção sobre dois eixos: a diversidade de anteparos visuais e a de fontes luminosas. Lúcia constrói séries cromáticas ordenadas com filtros de acrílico, película ou vidro. Depois as ilumina, seja artificial, seja naturalmente com o curso solar modificado por clima e estação. Assim, altera padrões da percepção orgânica que o espectador tem do mundo, despertando-o imediatamente para aspectos normalmente invisíveis.

“O Gabinete” é uma obra exemplar da experiência proposta. A instalação, realizada para a II Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 1999), apropria-se de duas janelas para servirem de focos de iluminação natural de um cômodo existente na beira do rio Guaíba. A intervenção mantém o padrão geométrico das janelas: a grade ortogonal. Lúcia constrói uma matriz cromática pela composição de filtros que cobrem, um a um, os intervalos originais. O conjunto varia ao longo dos dias, de maneira integrada: as cores suaves, projetadas sobre o chão desde o começo da tarde, vão lentamente se definindo e escalando colunas, parede e porta, até desbotarem completamente no pôr-do-sol. A percepção do tempo torna-se manifesta: tanto no sentido meteorológico, pois nuvens, chuva ou sol alteram as seqüências percebidas, quanto no cíclico, dada a modificação imposta pelas horas do dia.

Diante de situações como a descrita, os espectadores se lançam espontaneamente no jogo da aferição. Perguntam uns que cores outros estão vendo, enquanto declaram as próprias impressões. Tal reação é constatada, sobretudo, nas modificações da visão por anteparos monocromáticos, como no caso das caixas-filtro: cúpulas suspensas de acrílico, que servem de campânulas para até dois espectadores. Nesse caso, a série cromática percebida é a paisagem, simultaneamente alterada no todo e nas partes, embora seja mantida uma correlação evidente de contraste entre os diversos matizes subtraídos pela cor única do filtro.

Dependemos uns dos outros. Mesmo desconhecidos são levados a comparar as percepções, ao encontrarem-se como espectadores de uma obra de Lúcia Koch. A sociabilidade aparece, pois, espontaneamente em situações de mudança de perspectiva sobre o mundo.

Publicado no catálogo da 8a Bienal de Istambul, 2003.