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As ficções matemáticas de Lucia Koch, uma imaginação mais delirante que lógica…

Juliana Monachesi

A relação entre arte e matemática se vê mais nitidamente, nos dias de hoje, na arte computacional, que se vale de algoritmos para desenvolvimento de programas específicos para a criação artística. Outras formas de designar esta produção são “arte digital” ou “arte numérica”, por conta da linguagem binária utilizada pelos computadores. Entretanto, a matemática perpassa todas as dimensões da vida, de formas mais ou menos aceitáveis à nossa intuição. Na exposição individual de Lucia Koch, que termina hoje na galeria Casa Triângulo, as relações entre arte e matemática são mais da ordem daquelas que a intuição não alcança. Estamos no campo da matemática moderna.

“Minha mãe era pesquisadora nesta área, então aprendi a pensar com a linguagem lógico-matemática. O espaço que eu percebo é topológico; cor é sempre atributo e elemento relacional, e meus trabalhos são conjuntos de conjuntos. Isso sempre existiu, mas nesta exposição queria que ficasse mais claro”, explica a artista. Os espaços topológicos são uma noção unificadora que aparece em virtualmente toda ramificação da matemática moderna. A topologia é o ramo da matemática que estuda os espaços topológicos; trata-se do estudo das propriedades topológicas das figuras, ou das propriedades geométricas de um corpo que não são alteradas por deformação contínua (homeomorfismo).

Procurando informações sobre o assunto, me deparo com o texto de uma pesquisadora [Circe Mary Silva da Silva, “No paraíso dos símbolos: surgimento da lógica e teoria dos conjuntos no Brasil”] que conta como as teorias da matemática moderna chegaram ao Brasil. Sem maiores pretensões, passeio pelo texto e encontro uma explicação acerca dos “conjuntos definidos ou mencionáveis” e dos “conjuntos idealmente definidos”, que me dá uma idéia mais alargada do que significa uma artista trabalhar por conjuntos: “Meus trabalhos são conjuntos de conjuntos…”.

Segundo o matemático Lélio Gama, ensina a autora, “um conjunto é considerado definido quando se conhece a condição necessária e suficiente para que um elemento pertença ao conjunto”. Entretanto, admite-se a idéia de que existam conjuntos idealmente definidos, no caso dos quais “procura-se admitir a priori a possibilidade lógica de formulação de um critério de definição, embora não se possa enunciar esse critério”. Ainda que o assunto aqui sejam estritamente os números, permito-me a liberdade poética de pensar nos trabalhos de Lucia Koch como conjuntos idealmente definidos.

“Os matemáticos divergem quanto à aceitabilidade, como elemento do raciocínio matemático, de um conjunto idealmente definido. Os empiristas (Borel e Lebesgue) contestam ou põem em dúvida a existência de um conjunto, de que não se tenha formulado a norma de definição. Alguns empiristas (Borel e Lusin) vão mesmo a ponto de exigir que a definição de um conjunto implique um modo de construção efetiva de seus elementos. Para os idealistas, ao contrário (Hadamard, Sierpinski, R. L. Moore), a existência dos conjuntos não mencionáveis é perfeitamente legítima. Para Hadamard a diferença dos dois pontos de vista é apenas de ordem psicológica” (Gama, 1941, p. 6), citado por Circe da Silva.

Para quem acompanha a trajetória de Lucia Koch e chega à galeria Casa Triângulo com alguma norma de definição acerca de seus conjuntos de trabalho, a exposição é uma surpresa. Em lugar das superfícies perfuradas ou das fotografias espaciais e/ou atmosféricas que temos visto nos últimos anos, encontramos coleções de azulejos (fotografados). Há elementos de conjuntos conhecidos: a fachada transparente foi recoberta por adesivos perfurados e as saídas, transformadas em entradas de cor por meio de portas de correr de acrílico colorido -também perfurado. Toda a série de fotografias, em que são combinados diferentes conjuntos de azulejos, gera uma suspensão do juízo. Do que a artista estaria tratando aqui?

Uma lembrança que vem à mente é a dos cemitérios de azulejos, que começam a rarear na cidade, mas costumavam existir em profusão há uma ou duas décadas. Sempre achei esta uma imagem muito poderosa: aqueles azulejos antigos empilhados, todos fora de linha, memória de um passado em que os gostos eram diferentes, os hábitos eram diferentes. Um museu de tipos arquitetônicos e de estilos de época. Entretanto, não são as qualidades estéticas do azulejo que interessam à artista: “Nos trabalhos com imagens de azulejos existe uma relação direta com as paredes originais, criando uma espécie de ficção matemática, ordem paralela ao real”.

Fico pensando se, nesta exposição, Lucia Koch não desviou o foco da intervenção arquitetônica tão presente em seu trabalho, e levado às últimas conseqüências, me parece, no projeto “Luz Ambiente”, do Jamac. “Meu trabalho não responde só à arquitetura, mas a uma situação dada. Casas, museus e galerias são espaços de naturezas diferentes, para usos e acontecimentos específicos, e são desenhados e adaptados para isso. O novo espaço da Casa Triângulo se pode atravessar, pelo menos este é o percurso que imaginei: começa transparente na fachada, onde ele mais se comunica com o que está fora dele e depois se volta para dentro e divide em dois até as saídas dos fundos. As intervenções que eu fiz com adesivos perfurados e nas saídas queriam dinamizar este fluxo. Tem mais a ver com topologia, noções de fechado-aberto, dentro-fora”, afirma a artista.

Sobre os trabalhos fotográficos e o vídeo, explica: “O espaço interno, voltado para si e supostamente neutro, foi usado como o lugar de objetos que se referem a si mesmos, um conjunto universo onde os outros conjuntos se comunicam. Os materiais concretos não foram construídos segundo um princípio estético, embora os azulejos sejam decorativos. São sistemas abertos que podem ser usados para a compreensão de conteúdos matemáticos, assim como os materiais que eu manipulava quando criança. E a diversidade dos padrões de azulejos cria uma certa confusão necessária, gera dúvida. Às vezes sugere uma imaginação mais delirante que lógica”.

As ordenações que a artista imprime a esta matéria-prima matemática de fato geram dúvidas mais do que conclusões lógicas, o que é prerrogativa da arte, aliás. O vídeo que na exposição era projetado em um canto de parede no mezanino da galeria, uma animação feita em computador, põe em funcionamento o que, na fotografias, fica sugerido: uma sucessão de imagens de azulejos combinando-se de diferentes formas infinitamente, um conjunto indefinido. De novo, a força estética do material se choca com a intenção mais racional do projeto: a sugestão de uma superfície infinita decorada de padronagens antiquadas é uma potência poética ímpar.

Publicado por Juliana Monachesi no canalcontemporaneo.com.br, em 2005