back to top

a vertigem da precisão l em toda sua limpidez, em todo seu mistério

Marta Bogéa

Materiais de construção organiza-se a partir de
duas situações: Entulho, uma caixa com peças cortadas, grande parte delas sobras das peças produzidas em outros tempos l obras; e Showroom, mostruários com uma ampla variedade de materiais organizados por tipologias de cortes e materiais.

Essas são situações-limite de um processo de construção civil industrial habitual: disponibilidade de materiais organizados para seleção e aquisição, e entulhos resultantes da demolição que finaliza e, ao mesmo tempo, indica recomeço do processo para a execução de um novo espaço. Situações normalmente afastadas no tempo são aqui apresentadas em simultaneidade: disponibilidade e descarte.

Uma explicitação dos tempos de construção vistos a partir dos materiais. Mas são muitos e outros os tempos que aqui habitam.

Entulho encontra-se na vitrine da galeria. São sobras, pequenas peças resultantes dos cortes nas chapas usadas como matéria-prima de outros trabalhos. Aqui, a artista se despede de um acervo de restos que estavam criteriosamente estocados até o momento dessa obra l sobra. Lá, armazenados ao longo dos dez últimos anos, encontravam-se separados por tipos como devem ser os materiais à espera de uso; aqui, foram misturados os vários padrões, depositados em caixas de descarte.

Obra “inútil”, porque afastada da promessa de utilidade que esses materiais guardavam até então. Mas, é importante ressaltar, esse material feito descarte ocorre dentro de certa lógica – nada a princípio impediria que essa mistura retornasse a sua condição de material à disposição, mesmo híbrida, desde que dentro de outra lógica de construção. A irreversibilidade aqui é uma decisão.

Ao embaralhar os materiais, Lucia Koch constrói um canteiro às avessas. Uma espécie de “demolição”. Avesso também da sala principal, onde, em mostruários, os materiais encontram-se na condição de potencialidade pura, para usos os mais variados e imprevistos.

Showroom apresenta um inventário de padrões construído ao longo de vários anos de produção da artista. Conjuntos que guardam um princípio mais lógico que formal na sua organização: mostruário fachadas; mostruário madeiras; mostruário acrílicos; mostruário dégradés, mostruário espelhos.

Organizados em displays corriqueiros, dispositivos de amostragem presentes em lojas de materiais de construção, os padrões podem ser manipulados, afastados para visibilidade de cada um, mas (como habitualmente nos mostruários) mantêm-se aprisionados no formato de objeto. Aglutinados, esses padrões são uma promessa de disponibilidade que não se realizará. Os materiais não estão à venda, não podem ser escolhidos, separados, distinguidos, e passam aconfigurar uma saturação.

Como se, ao descobrir a singularidade de cada um dos elementos, matéria-prima presentes na construção de suas obras l lugares, Lucia Koch partilhasse seu inventário de matérias-primas por outrem. E, depois de laboriosamente construir obras únicas e irrepetíveis, devolve a matéria à condição de uma matéria universal, descarnada de espaço.

De um lado, a exposição apresenta o rigor lógico-matemático de catalogação; de outro, uma variedade multiforme e sensível de elementos embaralhados. Showroom Entulho apresentam-se como extremos da construção, e desmontam o traço persistente mais presente na produção da artista: sua indissociável associação com a paisagem arquitetônica, a qual, ao se inserir nela, transforma.

Lucia Koch é reconhecida como uma artista de espaço. Suas obras constroem lugares singulares a partir do diálogo estreito e preciso com o sítio de sua implantação.

Ao constituir suas obras, usa os materiais para editar a luz, o vento, a passagem do tempo evidenciada pelo movimento do sol, uma certa variedade de temperatura de luz a cada sala… aspectos intangíveis, rigorosamente configurados por meio do desenho de uma certa construção delineada criteriosamente através de materiais produzidos para a obra. Guarda desse lugar uma competência cara aos arquitetos: ao moldar a matéria, molda, de fato, seu reverso, o vazio que é a matéria-prima fundamental do espaço e da experiência nos lugares e, portanto, o que o significa.

E o faz através de uma materialidade advinda de um repertório que lhe é próprio, mas ao mesmo tempo desdobra materiais existentes, transformando- os, desviando-os, reinventando-os, como os dispositivos derivados dos cobogós, por exemplo, ou nas fotografias que revelam imagens existentes registradas e manipuladas. Na manipulação, muitas vezes, busca o erro, o desvio de padrão que singulariza uma situação; que a desloca da condição de generalidade abstrata para uma circunstância que transforma em único o que pertence a uma categoria geral. Um pequeno defeito, singular a cada caso. Erro não acidental, resultado de uma programação.

E o que parece distração foi rigorosamente projetado.

Nos termos de Calvino: o poeta do vago só pode ser o poeta da precisão.

No conjunto das três salas, a artista apresenta um resto de si mesma, uma sobra, uma volta sobre o próprio corpo naquilo que aquele corpo apresentava como próprio. Um riso vertiginoso ou um rigoroso processo de revelação? Desmontando o artifício, ao mesmo tempo revela-se puro artifício.

Como um resto de memória, instalados na borda do espaço expositivo, alguns vídeos revelam os lugares onde ocorreram os trabalhos para os quais (ou com os quais) aquela matéria foi moldada, uma espécie de dobra do exposto, campo limítrofe entre o que aqui se apresenta e a atualização ocorrida em outro tempo e lugar desses materiais na construção de cada obra singular.

Como uma caixa de ferramentas, Materiais de construção “contém” um certo acervo material e de procedimentos da artista. Mas, paradoxalmente, ao conter, expande e aponta para tudo o que, na produção da artista, transborda e desvia o uso imediato dessas ferramentas.

Esta exposição é uma re-velação: reapresenta Lucia Koch, em toda sua limpidez, em todo seu mistério.

Publicado no catálogo da exposição Materiais de Construção, 2012