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A traição das imagens: fundos de caixas como espaços arquitetônicos

Niura Legramante Ribeiro

As reproduções, distorcendo a escala e descaracterizando a densidade matérica dos originais, criam o que André Malraux denominou de “artes fictícias”1 ligado a sua idéia de “Museu Imaginário” viabilizado pela fotografia que modifica a percepção da realidade. A concepção de “artes fictícias” parece ser a operação mobilizadora dos trabalhos fotográficos da série “Fundos” realizados pela artista Lucia Koch. Nessa série fotográfica, outra questão vital que se coloca é a relação entre “o referente externo e a mensagem produzida por este médium” como diria Phillipe Dubois em O Ato Fotográfico. Pelo viés dessas duas considerações podemos encontrar uma pertinência de leitura possível para os trabalhos daquela série.

Interessada em explorar a dimensão que a imagem fotográfica pode conferir ao real e procurando criar situações de projeções de espaços, Lucia fotografa os interiores de caixas de massa, de leite, de vinho e de bolacha em trabalhos como Spaghetti, 2003 (250 x 125cm), Tagliatelle, 2001 (275 x 125cm), Fusilli (275 x 460cm), Tetrapak (300 x 400cm) e Cream Cracker, 2004 (275 x 300cm), colocando tais imagens em escalas arquitetônicas, impressas em papel fotográfico. Desta forma, a artista acaba por desrealizar os originais criando espaços fictícios. Esses títulos instigantes remetem aos produtos originais das caixas fotografadas.

As fotos possuem, normalmente, um enquadramento longitudinal deixando visíveis as dobras que constituem os fundos das caixas e com acentuadas linhas de suas perspectivas laterais. As imagens são de grandes dimensões e apresentadas de forma que estabeleçam um diálogo estreito com os espaços expositivos. Sempre que possível, para funcionar como extensores do espaço, as fotografias desses interiores de caixas devem equivaler à altura e largura da parede na qual são colocadas. Com isto, a artista estabelece uma relação entre o espaço fotográfico-arquitetônico enquanto tal e o espaço topológico no qual se encontra o espectador, remetendo-o para seu interior como se pudesse entrar não somente com o olhar, mas com o corpo todo, pois a intenção é mimetizar a imagem com a escala da arquitetura do local provocando efeito de continuidade espacial.

As linhas das dobras das caixas são condutoras de nossa sensação espacial para o interior das imagens, exercendo uma força centrípeta e instaurando, desta forma, a ilusão de tridimensionalidade. Um certo exagero das linhas de perspectiva é obtido pelo uso da lente grande-angular. No momento inicial no qual nos colocamos frente à imagem, por sua dimensão e linha de força, ela nos atrai causando a sensação de estarmos dentro do espaço. Somente com um olhar mais escrutinador, saímos do espaço virtual e, então, retomamos a consciência do real. É a experiência de estar dentro e fora do espaço. Com o procedimento de tomar uma caixa, captar a imagem em profundidade desse objeto e colocar essa imagem sobre uma parede de galeria ou museu2, Koch realiza a operação de passar do real para a imagem e dessa imagem, criar uma situação de espaço virtual:

“A analogia espacial entre o objeto e a arquitetura da galeria vai alem de um mero ilusionismo ótico, produzindo uma troca entre a experiência real e virtual do espaço. Há um movimento constante da tridimensionalidade virtual gerada pela imagem em larga escala para a tridimensionalidade inerente ao objeto”3

Na série “Fundos” não há excessos. Tudo é muito econômico e, por isso mesmo, somente funciona quando estabelece relações de pertencimentos, de congruências com a arquitetura do lugar. Desta forma, desqualifica a escala original do objeto para requerer analogia com a escala do espaço arquitetônico no qual a imagem é inserida. As escalas de suas fotos são, portanto, determinadas pela escala do espaço físico expositivo, pois quanto mais mimetismo estabelecer com o local, mais a imagem cumprirá a sua função, como assegura a artista:

“ Vejo as caixas como espaços virtuais, uma continuação do espaço real; encontro às dimensões para o trabalho conforme os pés direitos ou aberturas de portas; às vezes, podem ser horizontais, outras vezes, verticais que parecem portas para corredores”4

As arquiteturas desses interiores não chegam a se construir em espaço de clausura, porque janelas de luzes são valorizadas. A artista usa somente a luz natural que penetra pelas próprias aberturas originais já existentes nas caixas e que acabam funcionando como janelas ou clarabóias no espaço, pois conforme a artista posiciona a imagem final, a luz entra pela parede lateral ou pelo teto da caixa e simula um ambiente real. Na parede da caixa onde a luminosidade é refletida, podemos ver de que lado vem a luz, como num espaço real. Desta forma, a luz também contribui para a afirmação de uma situação espacial, como esclarece a artista:

“A projeção de luz natural nos interiores das caixas cria verossimilhança, parecendo a incidência de luz do sol num espaço arquitetônico. E, também, se identificamos um tipo de espaço reconhecível, como uma sala ou corredor, o efeito se intensifica. Funciona melhor.”5

Ao valorizar a luz que penetra pelas aberturas das caixas, a artista parece compactuar ainda mais com a criação de espaços arquitetônicos fictícios. A luz como partícipe dessa ficção, ajuda a corroborar com a invenção desse espaço.

Em Alguns trabalhos da série “Fundos’ a artista recorreu ao procedimento de colocar filtros de cores e algumas padronagens de grades nas entradas das luzes. Tais dispositivos vêm de trabalhos anteriores, dos procedimentos que também já utilizava em espaços arquitetônicos reais uma vez que as caixas não deixam de funcionar como maquetes de arquiteturas. A Artista já realizou intervenções com filtros em luzes de clarabóias como a que realizou num corredor da Galeria Chaves Barcellos, em Porto Alegre e num edifício em Portugal.

Seus trabalhos mais antigos tratam de investigar a relação da luz com os espaços exteriores e interiores, a forma como um espaço interno de um determinado local e a imagem externa que se observa de dentro dos ambientes, podem ser afetadas pelos dispositivos dos quais se valia6. Em trabalhos como o que realizou num ambiente arquitetônico da Ilha da Casa da Pólvora7 interferiu na luz que penetrava numa casa, através de filtros coloridos colocados em janelas. O visitante que se colocava no interior da casa podia observar uma paisagem monocromática: ora a paisagem podia ser azul, ora laranja ou cinza, como se cortinas de cores passassem em frente ao olhos.

Se as mutações de densidade das cores das luzes e de deslocamentos destas dentro do espaço real interessavam à artista em obra apresentada à II Bienal do Mercosul8, em 1999, isto já não ocorre na serie “Fundos”. Primeiro, que nessa Bienal o espectador se

confrontava com o espaço real sendo, portanto, perfeitamente possível observar as mutações de cores das luzes se o visitante permanecesse no espaço durante algum tempo. Aqui, mesmo em se tratando de imagens fotográficas, se assim a artista desejasse, poderia ter registrado determinadas mutações das luzes dentro das caixas através de várias fotografias. Porém, não nos é apresentada uma série de imagens capazes de evidenciar de forma narrativa o mesmo espaço em diferentes condições de luzes, pois não se trata de fotografia como documento, mas de corporeificação de um olhar fixo no momento de extração da imagem.

Este seu interesse pelos locais de entrada de luzes no espaço, sobretudo na serie fotográfica aqui tratada, não deixa de reverberar a condição primeira da existência da fotografia: uma caixa obscura com entrada de luz. Esta operação básica é o primeiro domínio do sujeito que se coloca atrás da câmera fotográfica e que pode, igualmente, colocar filtros para captação da imagem conforme o resultado que espera obter. Quando se vê o padrão das grades refletido sobre as superfícies internas das caixas, não se pode deixar de lembrar do recurso da câmera obscura, utilizado pelos antigos mestres da pintura, para captação do real, sendo que, muitas vezes, tal câmera era um quarto escuro no qual o artista copiava o desenho refletido sobre a parede.

A série “Fundos”, detentora de uma intenção ilusionística de continuidade do espaço real, não deixa de realizar operações transgressoras que envolvem a percepção desse real pela fotografia, uma discussão sobre o léxico da imagem fotográfica, sobretudo quando se lê os títulos, que parecem responder perfeitamente ao conceito de “artes fictícias” levantado por Malraux, diria ‘espaço fictício’:

“as obras perdem sua escala. É então que a miniatura se torna parente da tapeçaria, da pintura, do vitral. (…) A reprodução criou artes fictícias…, falseando sistematicamente a escala dos objetos, apresentando marcas de chancelas orientais e de moedas como se de estampagens de colunas se tratasse, amuletos como se fossem estátuas. (…) A joalheria adquire a escala da escultura, acha por fim seu significado nas series de fotografias onde relicários e estatuas tem a mesma importância9.”

Tais considerações referem-se à análise do autor em relação as reproduções das obras de arte. Essas afirmativas dizem, igualmente respeito, as desrealizações que a fotografia possibilita em relação ao objeto original. Se, portanto, para o autor de As Vozes do Silêncio, a fotografia pode fazer com que uma miniatura tome a proporção de uma tapeçaria, uma caixa de Spaghetti ou Tagliatelle também pode tomar a proporção de um espaço arquitetural, o que testemunha o caráter de falsificação da escala desse real, de transformação desse real pela fotografia. Se o “fragmento é o mestre da escola das artes fictícias”10, no caso da obra de Lucia Koch, a ampliação será a “mestra das artes fictícias”. O que tais trabalhos certificam é a evidência de que o aparato fotográfico é um criador de ficções.

A série “Fundos” possui a condição interrogante sobre a gênese discursiva da fotografia como ciência, como reprodução exata do mundo, como conhecimento infalível ao qual esteve atrelada quando seu surgimento no século XIX. Nesse sentido, podem ser evocadas as assertivas de Philippe Dubois ao retraçar o percurso histórico das diferentes posturas teóricas a respeito da fotografia e sua relação com o referente. Referindo-se àquele século, diz o autor:

“A fotografia foi maciçamente considerada como uma imitação um pouco mais que perfeita da realidade. Possui esta capacidade mimética, segundo os discursos da época, pela sua natureza técnica, pelo seu procedimento mecânico, que permite fazer aparecer uma imagem da maneira “automática”, “objetiva”, quase natural (segundo as leis da óptica e da química) sem que intervenha diretamente a mão do artista11.”

Essa concepção da fotografia como “espelho do real” apontada por Dubois nos discursos de intelectuais como Baudelaire – “fotografia como instrumento de uma memória documental do real” – e Taine – a fotografia “imita com perfeição e sem nenhuma possibilidade de erro a forma do objeto que deve produzir”12, contribuiu ao longo dos anos, para dar credibilidade ao real, à afirmação do automatismo da gênese técnica da fotografia. Autores de livros, pesquisadores de processos técnicos e com interesses mercadológicos, também ajudaram a difundir tal entendimento, quando de sua invenção, como Talbot em O Lápis da natureza (1844-1846) que para demonstrar o caráter científico do calótipo, chegou a afirmar, naquela publicação, que “as pranchas da presente obra foram impressas pela única ação da luz, sem qualquer ajuda do lápis do artista. São as próprias pinturas de sol e não, como alguns imaginaram, gravuras de imitação”13. Mesmo sem levar em conta que suas imagens referenciavam um repertório extraído da tradição pictórica, a fotografia, na sua ótica, possuía um determinismo mecânico ao captar a imagem do real. O titulo daquele seu livro ou o de Muffone Como pinta o sol (1987), denunciavam, na verdade, o caráter híbrido da fotografia, caráter este já apontado por Annateresa Fabris em seu estudo sobre A Fotografia e o Sistema das Artes Plásticas14.

O que a série “Fundos” de Lucia Koch parece afirmar é justamente o inverso do discurso da mecanicidade fotográfica, da ausência do sujeito. O que na verdade seus trabalhos confirmam é a presença do sujeito como interpretante do real através do uso dos códigos fotográficos que permitem elaborar um discurso visual ficcional jogando, portanto, com as possibilidades ilusórias permitidas pela fotografia. A escala fotográfica que utiliza serve ao mesmo tempo para negar a dimensão do referente e, também, para criar simulações de espacialidades arquitetônicas. Neste sentido, constrói uma aparente veracidade espacial, uma aparente imagem especular do real. Ao realizar investigações sobre a própria sintaxe de constituição da imagem na fotografia, Koch inscreve seus trabalhos em procedimentos inquisidores da natureza fotográfica. A serie “Fundos” utiliza a fotografia para falar da própria fotografia.

Publicado na revista Porto Arte, no 22, Maio de 2005